O árduo começo de um trabalho glorioso
É oportuno repetir que, no seu desejo insopitável de pregar o evangelho no Brasil, Eurico Nelson não contava com nenhum auxílio humano. Não tinha ainda sido consagrado ao ministério e, por isso, também não esperava remuneração de nenhuma igreja. Mas decidira partir e nada neste mundo seria capaz de demovê-lo. Um dos traços distintivos do seu caráter, desde a infância, segundo o testemunho de seu irmão Carlos, era a firmeza de seus propósitos e a pertinácia com que os levava a termo. Era um “homem de uma só peça”, desses que só dizem “sim, sim – não, não”. Aliás, já tivemos oportunidade de falar sobre esse característico de Nelson, no capítulo anterior.
Assim, deixando sua casa, foi primeiro a Galveston, no Estado de Texas, e daí para Nova Iorque, com o fim de embarcar para o Brasil. Em Galveston houve um incidente interessante e bem sugestivo.
Nelson foi aos escritórios da Companhia de Navegação, solicitar uma passagem com o abatimento que a Companhia costumava dar aos ministros. Declarou honestamente ao funcionário que o atendeu que não era ainda ordenado, mas que ia para o Brasil como missionário.
O homem perguntou:
– Mas que prova o senhor fornece do que está dizendo. E Nelson incisivamente:
– Olhe para o meu rosto.
Foi o bastante: a Companhia forneceu-lhe uma passagem, com o abatimento solicitado, para Nova Iorque, onde deveria tomar o vapor para o Brasil.
Na grande cidade, enquanto esperava a chegada do vapor, encontrou um inglês que tinha morado algum tempo no Maranhão. Este sugeriu a Nelson que fosse para esse Estado, visto que no Pará grassava a febre amarela. Mas os planos de Nelson já estavam traçados, e ele nunca recuou por causa de informações dessa natureza.
Enquanto esperava em Nova Iorque, seus recursos se esgotaram. já não tinha com que pagar sua passagem para o Pará. Mas um dia, passando pelo correio, encontrou lá uma carta com vinte dólares. Era de seu pai e lhe dizia que em Nova Iorque o frio era muito forte e, por isso, lhe enviava aquele dinheiro a fim de que comprasse um sobretudo. Nelson foi logo comprar uma passagem de 3ª classe para Belém, dizendo com seus botões:
– Vou para o Brasil, onde não preciso de sobretudo.
Assim, quando chegou ao Pará tinha ainda 16 dólares no bolso.
O navio em que viajou chamava-se “Hope” (Esperança). Na sexta-feira 19 de novembro de 1891, o “Hope” fundeou em Belém. Nelson desceu e foi-se hospedar num hotel. Chegava ao Brasil em plena festa de Nossa Senhora de Nazaré. (*) Era esta, como até hoje, a festa católica, por excelência, da cidade, comparável à da Penha no Rio de janeiro. Desenfreava, de quando em quando, em vasta pagodeira carnavalesca. Numa grande sala estavam expostos braços, pernas e pés de cera, vendidos a bom preço pelos solertes exploradores da crendice popular. Esses pedaços de cera eram as provas dos “milagres” operados pela “santa” festejada e constituíam o pagamento de promessas feitas a ela. Foi assim um pouco rude o primeiro contato de Nelson com a idolatria romanista. Nesse mesmo dia, 19 de novembro de 1891, comemorava-se o 2° aniversário da criação da nova bandeira brasileira, em que figurava a divisa “Ordem e Progresso”…
No sábado de manhã, dia 20, Nelson foi procurar emprego na Companhia de Vapores, a The Amazon
(*) Essa informação é dada pelo próprio Nelson nas breves notas autobiográficas que escreveu. Parece ter havido alguma confusão de datas, porque a festa da Senhora de Nazaré se realiza em outubro. Ou teria sido realizada em novembro no ano de 1891? Não temos recursos para fazer essa verificação.
River Company Navigation. Ele tinha habilitações para qualquer espécie de serviço e prometeram-lhe arranjar algo, logo que houvesse vaga. Nesse mesmo sábado, ele conversou com diversos capitães de navios e eles o convidaram para pregar a bordo no domingo.
O que o inglês de Nova Iorque havia dito era verdade: a febre amarela grassava no Pará com extraordinária virulência, vitimando o povo e os marinheiros que chegavam à cidade. Indo pregar a bordo, Nelson veio a saber que muitos marinheiros estavam hospitalizados na cidade. Tratou logo de visitá-los. Durante a semana prestava assistência espiritual aos marinheiros atacados de febre amarela e aos domingos pregava nos navios. Dessa maneira começou Nelson a sua missão apostolar, arriscando diariamente a vida em contato com os doentes. Deus o manteve imune de contágio, pois que o reservava para grandes e magníficas tarefas.
Embora completamente desprovido de recursos, no seu afã de servir os marinheiros enfermos, Nelson alugou uma casa e nela abrigava aqueles que convalesciam da febre e aguardavam oportunidade para embarcar de novo. Isso era seguir realmente o Bom Samaritano. Nelson morava na mesma casa e cuidava, com paternal carinho, de seus hóspedes doentes.
Havia, em Belém, por essa época, um missionário metodista, Justus H. Nelson. Este, que passava por médico, tinha vindo em companhia de outros missionários, em 1885, com o bispo metodista William Taylor, a fim de estabelecer trabalho na Amazônia. Julgavam eles que se poderiam manter dando aulas de inglês. Começaram com animação a empresa em Belém e em Manaus, mas dentro em pouco alguns morreram de febre amarela, outros abandonaram o campo e Justus H. Nelson ficou só com sua esposa. Lutou quarenta anos em Belém, sem conseguir estabelecer trabalho sólido Isso prova o quanto era difício campo que Eurico Nelson escolheu.
Dentro em pouco, Nelson percebeu que não era conveniente continuar o trabalho sozinho. Dadas as circunstâncias locais, era lícito aplicar-lhe o “Ai do que está só” do Eclesiastes. Escreveu, pois, para a jovem que deixara, lá num Instituto de índios, no Estado de Kansas. Expôs-lhe a situação em que se encontrava, as muitas dificuldades, mas também as perspectivas promissoras do trabalho e perguntou-lhe se estava disposta a unir-se a ele naquela grande obra. E ela, com uma determinação igual à do companheiro que escolhera, largou tudo e embarcou para o Brasil. Com as poucas economias que havia feito, preparou, ela mesma, seu modesto enxoval e pagou sua passagem, de terceira classe, para Belém. Passou tão mal na viagem que o capitão, compadecido, arranjou-lhe um lugar na primeira classe.
Chegou ao Pará em 7 de janeiro de 1893. Viajara sozinha, confiante em Deus e animada pelo seu grande amor e pela esperança de realizar, ao lado do escolhido do seu coração, um grande trabalho, sob as bênçãos divinas.
Não foi possível arranjar um hotel para a moça e decidiram então efetuar o casamento no mesmo dia em que Ida chegou. A cerimônia deveria ser realizada pelo pastor metodista, o turbulento Justus Nelson. Este, entretanto, estava na cadeia… Escrevera um panfleto provocador contra a igreja Católica e, repetindo o gesto famoso de Lutero em Wittenberg, fora afixá-lo na porta da catedral, num desafio público ao bispo.
Assim, quem celebrou o casamento foi o cônsul americano e seis cônsules de diferentes nações serviram de testemunhas. Um “lord” irlandês, de nome Ivo Robinson, que se hospedara em casa de Nelson, foi o padrinho da noiva. Terminado o ato, o cônsul americano perguntou ao noivo se precisava de alguma coisa. Nelson respondeu que estava “a nenhum” e necessitava de cinqüenta mil réis… Depois, os noivos, Robinson, o cônsul e sua esposa seguiram para um restaurante a fim de cear. Mas ao saírem do consulado desabou um aguaceiro tão forte que os carros na rua tiveram de parar e os componentes do grupo chegaram ao restaurante completamente encharcados. Como os três hóspedes começassem a pedir bebidas que fossem um pouco mais fortes que café, Nelson tratou logo de pagar a conta que ascendera a 27 mil reis… A chuva havia passado; deixou então os companheiros que não estavam mesmo em condições de reparar na falta dos noivos e rumou com a jovem esposa para casa. Casa? Uma cabana, num arrabalde da cidade, onde nem cama eles tinham para dormir. Para uma jovem noiva chegada nesse dia de sua terra, cheia de sonhos e alegrias, o encontro com a realidade seria amargo. Não para Ida Nelson: nunca lhe faleceu a coragem. Veio pela fé, sabendo que seu noivo não tinha nenhuma garantia de sustento. A fé bastava para sustentá-la. No dia seguinte, estavam os dois recém-casados a bordo para o culto. Ida viera mesmo disposta a ajudar o marido em tudo e a arrostar com ele todas as provações.
Certo capitão canadense havia dado ao missionário um barquinho de presente. Nesse barco, com Nelson nos regos, ia o casal todos os domingos a bordo. Por causa da baixa-mar os navios ancoravam a duas ou três milhas de distância. Mas durante seis anos, só ou com sua esposa, Nelson não perdeu um domingo de trabalho a bordo. A isso acrescente-se que não era brinquedo essa viagem dominical aos navios. Não era passeio nem esporte. Velho crente que conhece o local e as circunstâncias dá esse testemunho acerca da dificuldade de remar o barquinho nas horas em que a maré baixava: Quer a jusante quer a montante a tarefa era terrível e mesmo um homem da água como Nelson arriscava a vida indo a bordo.”
Logo depois do casamento, Ida caiu de cama, com febre. O Dr. Ayers, cônsul americano, o mesmo que os casara, e que era também médico, tratou dela sem nada cobrar. Logo que ficou boa, ela teve, com seu marido, uma experiência interessante e impressionante.
Uma jovem norueguesa, que se estava preparando para ser enfermeira e depois médica, chegou a Belém, em companhia de seu pai. Estava descansando dos estudos e teve oportunidade de ouvir num domingo, a bordo; a pregação de Nelson. Na segunda-feira o pai da jovem foi pedir encarecidamente a Ida que fosse fazer companhia à sua filha, pois atacada pela febre, ela estava internada no Hospital São Francisco, onde só havia enfermeiros homens. A mãe da jovem enferma havia morrido anos atrás e o pai resolvera cuidar pessoalmente da educação da filha, libertando-a de toda “superstição” religiosa. Para ele, céu, inferno, vida futura, religião, eram bobagens, meras palavras completamente destituídas de significado. A vida presente devia ser bem gozada, porque não havia outra. Assim ensinara à filha e, justamente com o intuito de gozar bem a vida, levara-a naquela viagem. Agora ela estava naquele hospital de poucos recursos, em terra estrangeira, prostrada pela febre amarela. Nelson indo, em companhia de sua esposa, visitar a moça, viu logo que ela estava perdida. Disse isso francamente ao pai. Este, então, desesperado, pediu à filha, que lembrasse do que sua mãe lhe havia ensinado sobre religião.